No Brasil, completa duas décadas o Estatuto da Pessoa Idosa, ainda não cumprido em sua integralidade
Com a estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU) de que duplique o número atual de pessoas acima de 65 anos em 2050, o mundo precisa acelerar o aprendizado sobre como tratar melhor sua população mais velha. O Dia Internacional do Idoso, celebrado neste domingo (1º), chama a atenção para uma população longeva que se torna mais numerosa do que estratos mais jovens, o que representa um grande desafio para governos e sociedade.
São inúmeras as demandas contemporâneas da terceira idade. No Brasil, está completando duas décadas o Estatuto da Pessoa Idosa, de 2003, que tem por objetivo garantir direitos e combater negligência e violência de diversos tipos (leia mais abaixo). De ampla repercussão na imprensa, casos de etarismo envolvendo figuras conhecidas ou que viralizam nas redes sociais convidam à discussão sobre o preconceito motivado por idade.
Ainda que tenha, de alguma forma, se diluído em tempos mais recentes, o preconceito contra a velhice segue arraigado. Para Iride Cristofoli Caberlon, enfermeira e presidente do Conselho Estadual da Pessoa Idosa, essa cultura destrutiva é insuportável.
— Tem uma série de mitos que não se justificam mais hoje em dia. A pessoa idosa, como qualquer outra, precisa de respeito e dignidade. É um cidadão com direito a voz, voto, ideias próprias. Em vez de identificarmos na velhice uma sabedoria, valores importantes a serem transferidos para novas gerações, continuamos vendo a pessoa idosa dessa forma discriminada — critica Iride.
O médico geriatra Marco Túlio Cintra, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e professor do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que a imagem do idoso ainda está atrelada às ideias de incapacidade, dependência e estorvo.
— Se as pessoas forem bem cuidadas ao longo da vida, espera-se que tenham um padrão de envelhecimento melhor. Se não estiverem cuidando da saúde ao longo da vida, terão muitos anos com envelhecimento frágil. Vacinas, consultas periódicas, atividade física, combate ao tabagismo e etilismo, obesidade, todas essas questões, se cuidadas, vão fazer com que as pessoas envelheçam bem — justifica Cintra.
Mas não é simples assegurar recursos para o bom transcorrer dos anos. O aparato de saúde brasileiro, apesar das muitas qualidades, ainda não está à altura, segundo o geriatra, das demandas da terceira idade:
— Há necessidade de cuidado integral de saúde com os idosos. Ainda temos um sistema público muito despreparado para o envelhecimento, sem uma linha integral de cuidados, uma rede de assistência.
O processo de envelhecimento é bastante heterogêneo. Há indivíduos que envelhecem mal, mas, em contrapartida, mostra-se grande o grupo daqueles que envelhecem bem.
— Aquela imagem do idoso com uma bengalinha é um estereótipo do incapaz, do dependente, do que custa para a sociedade. Depois dos 60 anos, ainda se pode ter décadas de vida com qualidade. O Brasil está conquistando longevidade, mas temos que batalhar pelo envelhecimento saudável — afirma o presidente da SBGG.
Políticas públicas específicas precisam ser criadas e implementadas, com disponibilização de recursos, para garantir o envelhecimento ativo e saudável, destaca Iride.
— Nessas políticas, tem que haver programas e projetos articulados e integrados com todos os órgãos públicos, com ações voltadas a pessoas idosas. Com participação de conselhos, da sociedade civil, das famílias — diz a representante do governo estadual.
A administração pública não pode estar focada apenas para nos centros urbanos. Iride ressalta que é significativa a presença da terceira idade na zona rural.
— É preciso sensibilizar os gestores municipais para ter um olhar diferenciado para essa população. Temos que continuar cuidando dos jovens e das crianças, mas também dos idosos. Está faltando a sensibilidade de olhar melhor as estatísticas da população — comenta a enfermeira.
Cintra acrescenta ao debate a representatividade econômica da terceira idade. Em muitas pequenas cidades brasileiras, o dia de grande movimentação no comércio é o de pagamento dos benefícios dos aposentados, que movem essas economias locais.
— Idosos cuidam dos netos para que os pais possam trabalhar e não recebem por isso. Idosos continuam contribuindo muito para a sociedade e não são vistos, não são reconhecidos. Fora que muitos ainda trabalham — complementa o médico.
Apesar dessas lacunas, a presidente do Conselho Estadual da Pessoa Idosa acredita que vem melhorando a forma como essa parcela da população é tratada no Brasil — com exceção dos institucionalizados (abrigados em residenciais para longa permanência), ainda considerados, em grande parte, invisíveis.
— Acho que o conhecimento ainda é incipiente, mas, da pandemia para cá, está aumentando. Está tendo muita discussão sobre terceira idade, envelhecimento ativo e saudável. É fundamental que esse movimento aumente em todo o país, em todos os segmentos da sociedade — diz Iride.
A conformação da sociedade como um todo, e não apenas da parcela mais no trecho final da escala etária, mudou bastante. As famílias estão menores, com muitos casais optando pelo filho único. Mais longevo, o contingente de idosos teve mudanças significativas de perfil. Se antes o homem ou a mulher de 50 anos já estava aposentado, de abrigo e chinelos, o adulto de meia-idade dos dias de hoje ainda tem muita vida produtiva pela frente — por opção ou necessidade. O setor tecnológico está oferecendo dispositivos para garantir uma terceira idade independente, mas cercada de cuidados.
— Há um mercado crescente para que essas pessoas continuem morando sozinhas por muito tempo. Os produtos chegam à casa dela, tem um dispositivo que avisa o horário da medicação, outro dispositivo avisa um familiar se ela cair em casa — exemplifica Cintra.
Datado de 1º de outubro de 2003, o Estatuto da Pessoa Idosa é apontado como exemplar e referência mundial pelo médico geriatra Marco Túlio Cintra, presidente da SBGG, ainda que a legislação não seja cumprida em sua integralidade. A amplitude do conteúdo da lei 10.741 pode ser verificada no dia a dia: a reserva de vagas para idosos no transporte público e na prestação de serviços públicos e privados está prevista no estatuto, como atendimento preferencial para quem tem a partir de 60 anos. Para Cintra, apesar de já somar 20 anos, a lei continua moderna.
— Tem o papel da família, do Estado, as punições para situações de abuso. Esse arcabouço foi realmente revolucionário. Falta muito (a cumprir), mas avançamos bastante — acredita o médico.
De acordo com Iride Cristofoli Caberlon, presidente do Conselho Estadual da Pessoa Idosa, todos os setores devem prestar atenção a esse seguimento populacional.
— Muita coisa que está no estatuto ainda não saiu do papel. Falta visão dos gestores, da sociedade, dos profissionais. O foco tem que ser a pessoa idosa, mas ela deve ser conhecida e ouvida — fala Iride.