Em celebração à data, Hospital Tacchini, de Bento Gonçalves, recebeu o especialista em transplante de pulmão J.J. Camargo
Conforme a Secretaria de Saúde do Estado, 2.676 pessoas esperavam no RS pela doação de um órgão até o fim de segunda (25). Na tarde de terça (26), no auditório do Hospital Tacchini, em Bento Gonçalves, o médico nascido em Vacaria, J.J. Camargo, 77 anos, trouxe os desafios desse tipo de operação no Estado e no Brasil, por conta do Dia Nacional da Doação de Órgãos, celebrado nesta quarta (27). É um procedimento que transforma vidas, mas que não depende apenas de um forte financiamento e de uma medicina avançada e qualificada.
Camargo, primeiro médico a realizar um transplante de pulmão na América Latina, em 1989, lembra que um dos obstáculos está na doação dos órgãos. Na palestra, o especialista, com 748 transplantes de pulmão na carreira (40 com doadores vivos), destaca que ter mais doadores não envolve apenas a aceitação de uma família em um momento de dor, mesmo que um dos passos iniciais seja sensibilizar a todos sobre o tema:
— Quando pensar em doação de órgãos, pense no gesto mais amoroso que você conhece. Uma família doando para outra família desconhecida para evitar a dor que passaram.
Diretor e idealizador do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre, ele relata que os procedimentos em relação ao pedido de doação devem ser reforçados. Um problema mencionado é a falta de comunicação de médicos sobre mortes encefálicas – que é o diagnóstico que permite a doação de órgãos. Mudanças como essa poderiam levar o país ao patamar de Espanha e Estados Unidos, referências no tema.
Entre os desafios e a rotina de quem atua com transplantes, Camargo vê de perto a transformação de uma vida que passa meses ou anos de sofrimento e depois transborda de euforia e felicidade com a operação. São inúmeros os casos: como o do paciente que conseguiu ter relações sexuais pela primeira vez em anos após o transplante e ligou de madrugada, ofegante, para contar ao médico. Ou da paciente que chorou de alegria ao conseguir lavar as pernas no banho porque antes de receber um novo pulmão, sufocava-se se ficasse curvada.
Confira abaixo a entrevista que Pioneiro fez com J.J. Camargo:
J.J: A doação de órgãos para ser eficiente tem dois braços: um é o da comunidade, que é uma educação progressiva construída em grande parte pela mídia. A mídia hoje tem papel que está substituindo a igreja como modelador de comportamento humano. A gente vê muito isso refletido com a notícia de alguém importante que precisou de doação, ou a notícia de alguém importante que doou. E aí, aumenta as doações. As pessoas estão atentas a isso. O que aumenta enormemente a responsabilidade social da mídia, que tem que cuidar muito com o que diz. A doação de órgãos em relação com a sociedade é uma questão de confiança, não tem nada que corrompa mais do que quebra de confiança. Por isso que eu disse uma coisa que eu acredito piamente: a sociedade diferenciada e progressista doa órgãos. A sociedade primitiva desconfia, porque a desconfiança e a ignorância são irmãs gêmeas. O que você não conhece, você desconfia, e o que você sabe como como funciona, você tem mais autonomia para decidir com isenção.
Tem uma coisa que talvez não tenha sido falada, que é muito importante: eu tenho pressionado os políticos que adoram propor projetos de lei. Quer fazer um projeto de lei útil? Faz um projeto de lei que torna obrigatória instruções sobre morte encefálica, transplantes de órgãos no primeiro e segundo grau. Quando você não faz isso, você está subutilizando um vetor de informação para o seio da família, que é a criança. A criança que ouve na escola falar sobre morte encefálica, fica impressionada e vai levar esse assunto para discutir. E uma coisa que a gente sabe muito bem é que a doação de órgãos é muito difícil. Tu é estimulado a doar, solicitado a doar num momento de sofrimento, você perdeu alguém da família, está revoltado, está machucado, e aí tem que ser generoso. Isso não combina. E o papel das campanhas de esclarecimento é que você fale disso antes, para que você decida isso antes de acontecer. Se é tão difícil doar sem ter informação prévia, é impossível conter o que uma família faz para cumprir a última vontade, se isso foi expresso em vida. Eu já vi coisas comoventes. Me lembro de um pai de uruguaiana perder um filho de 16 anos. Ele caiu de skate e bateu com a cabeça no cordão da calçada e morreu. E o guri tinha dito para o pai, uns dias antes de morrer, vendo televisão, ‘Eu também quero ser doador’. Estava uma situação muito desfavorável, estava chovendo muito e não se conseguiu o avião para Uruguaiana (para buscar os órgãos). Ele sabia que tinha um tempo de validade da morte encefálica. Daqui a pouco ninguém segura o coração batendo. Eu me lembro que a minha cirurgiã foi no grupo de médicos buscar o pulmão. Ela me contou que quando posou o avião em Uruguaiana, tinha um Megane do ano estacionado dentro da pista. E ela pensou, ‘Pô, a secretaria da saúde aqui tá bem’. Mas, era o carro do pai. Ele estava lá para levar os médicos rápido, porque ele sabia que se o coração parasse não ia ter doação e ele não poderia cumprir a vontade do filho.
J.J.: Em Santa Catarina, o doutor Joel de Andrade (coordenador estadual de transplantes) elegeu 52 hospitais que tem condição de fazer o diagnóstico para doação, conversar com a família, comprovar tudo o que tem comprovado de viabilidade, de testes de antiviral, hepatite… E também se não tem a estrutura na cidade pequena, no caso da família querer doar, o que fizeram foi investir num hospital que ofereça condições para isso. E nenhum caso de morte encefálica desse hospital deixa de ser comunicada. Uma grande tristeza você saber que um monte de gente que morre, o médico não se anima em comunicar para Secretaria da Saúde porque vai dar trabalho, vai ter que fazer exame e tal. É triste você perceber que o mesmo médico daqui a pouco tem um familiar precisando de transplante, ele fica numa devoção por fazer as coisas direito. Por que não faz em todos? Outro sistema que valorizo muito é que cada um desses hospitais tem um médico responsável pela captação de órgãos e ele ganha por procedimento. A maioria dos intensivistas do Brasil trabalha em UTI com um número maior de pacientes do que é permitido por lei, né? E aí quanto tem um doador, o que acontece? Vai dobrar o número de exames que vão pedir, de procedimentos que vai fazer e todas as equipes vão ficar te telefonando.
J.J.: Eu não sou contra a religião. A religião, por exemplo, é uma bengala fantástica do ponto de vista emocional no fim da vida, né? Ver como as pessoas que sofrem, ou perdem alguém ou estão para morrer, têm uma capacidade de conviver com essa realidade muito mais suave do do que o cara que não acredita em nada. Agora, o que eu acho abominável é querer misturar ciência com religião. Os critérios são outros. As pessoas que acreditam em alguma coisa, vivem mais, essa é a verdade, porque eles dão mais sentido á vida, né? Agora você encaminhar para oração um paciente que tem um câncer, eu já vi isso várias vezes. Podia ser tratado antes. Mas, não, primeiro vai fazer um tratamento espiritual. Tu não imagina o número de pacientes que eu recebo, com câncer inoperável, que está há 18 meses tomando uma pílula do padre ou frei X. Esse cara deveria ser preso. Esse cara tá tirando a chance de uma pessoa viver. E aí ele me manda uma carta: ‘Querido professor Camargo, paciente está assim, assim e assado’. E agora, qual é o milagre que nós vamos fazer? Isso é desonesto.
J.J.: É um bom sistema e oferece para todo mundo. As pessoas ficam preocupadas como se fosse um comércio, porque as pessoas acham que estão retirando pulmão de pobre para dar para rico. Foi o que muito ouvi no transplante (de coração) do Faustão. 95% dos transplantes são pagos pelo SUS.