Detalhamento das ações consta de decisão do ministro Moraes que autorizou a operação da Polícia Federal nesta quinta-feira
Com 135 páginas, a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes que deflagrou a maior investida contra supostos articuladores dos atos antidemocráticos traz detalhes de como auxiliares do então presidente Jair Bolsonaro estariam articulando “tentativa de golpe de estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito”. Reproduzindo extensa investigação da Polícia Federal, o documento cita trechos de reunião com a presença de Bolsonaro, espionagem de ministros do STF e tentativa de cooptação da cúpula das Forças Armadas. A operação é baseada na delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do então presidente Jair Bolsonaro, e em provas coletadas pelos investigadores, como a extração de conversas por aplicativos de mensagens e vídeos de reuniões da cúpula do governo passado.
Na página 70 do despacho, Moraes reproduz declaração em que o então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, defende uma intervenção antes das eleições de 2022.
— Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. Se tiver que dar soco na mesa é antes das eleições. Se tiver que virar a mesa é antes das eleições — afirma Heleno, segundo o documento.
A manifestação de Heleno teria ocorrido durante reunião realizada em 5 de julho daquele ano com a presença da alta cúpula do governo federal. Um vídeo com trechos do encontro foi apreendido na casa do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid. Segundo a Polícia Federal, participaram da reunião Bolsonaro, Heleno e os então ministros da Justiça, Anderson Torres, da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e Braga Neto, ex-chefe da Casa Civil e candidato a vice-presidente na chapa de situação.
Na ocasião, Heleno também sugeriu infiltrar espiões da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) nas campanhas eleitorais adversárias. Bolsonaro interrompeu a fala de Heleno e disse que discutiria a ação da Abin “em particular”.
A discussão de um golpe fica mais explícita quando a PF cita a criação de um decreto apresentado a Bolsonaro por dois auxiliares, Filipe Martins, preso nesta quinta-feira, e Amauri Saad. O documento decretava a prisão de Moraes, do também ministro do STF Gilmar Mendes e do presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). De acordo com a PF, Bolsonaro pediu mudanças no texto, com prisão somente de Moraes.
No dia 9 de dezembro de 2022, em mensagem enviada pelo UNA, ferramenta oficial de comunicação do Exército, Mauro Cid afirma: “Ele (Bolsonaro) enxugou o decreto”. “Após a apresentação da nova minuta modificada, Jair Bolsonaro teria concordado com os termos ajustados e convocado uma reunião com os Comandantes das Forças Militares para apresentar a minuta e pressioná-los a aderirem ao Golpe de Estado”, reproduz Moraes.
O despacho e a apuração da PF mencionam mensagens de WhatsApp extraídas do celular de Ailton Barros que supostamente apontam o envolvimento de Braga Netto na tentativa de golpe de Estado a partir da incitação de integrantes do alto escalão das Forças Armadas que se negavam a aderir à trama antidemocrática. O principal alvo seria o general Freire Gomes, então comandante do Exército, que desagradava Braga Netto ao não embarcar no golpismo.
Diz o despacho: “O investigado Walter Souza Braga Netto, inclusive, chegou a encaminhar para Ailton Gonçalves Moraes Barros mensagem que teria recebido de um FE (Forças Especiais), com a seguinte afirmação: ‘Meu amigo, infelizmente tenho que dizer que a culpa pelo que está acontecendo e acontecerá e do Gen FREIRE GOMES. Omissão e indecisão não cabem a um combatente’.”
Em resposta, “Ailton Barros sugere continuar a pressionar o general Freire Gomes e, caso insistisse em não aderir ao golpe de Estado, afirmou: ‘Vamos oferecer a cabeça dele aos leões’.”
O despacho diz que Braga Netto concorda e dá a ordem: “Oferece a cabeça dele. Cagão”.
Se o então comandante do Exército não quis aderir, o mesmo não teria acontecido com os chefes de outras forças. Conforme o delator Mauro Cid, “o então comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, em reunião com o então presidente Jair Bolsonaro, anuiu com o golpe de Estado, colocando suas tropas à disposição do Presidente”.
Outro preso na operação desta quinta-feira, o coronel do Exército Bernardo Romão Correia Neto teria arregimentado militares das Forças Especiais para atuar na intervenção. Conversas registradas no celular de Mauro Cid demonstram que Correia Neto, à época assistente do Comando Militar do Sul, teve participação ativa na organização de reunião com os oficiais, levada a cabo em 28 de novembro de 2022.
“Os diálogos (…) demonstram que Correia Neto intermediou o convite para reunião e selecionou apenas os militares formados no curso de Forças Especiais (Kids Pretos), o que demonstra planejamento minucioso para utilizar, contra o próprio Estado brasileiro, as técnicas militares para consumação do Golpe de Estado”, diz o despacho.
Em outro trecho da decisão, o major Rafael Martins Oliveira, também preso nesta quinta-feira, aparece conversando com Mauro Cid sobre a necessidade de se conseguir R$ 100 mil para financiar os acampamentos em frente de quartéis após a eleição. Conversas da dupla mostram planejamento para uma manifestação que seria realizada em 15 de novembro de 2022, em Brasília.
“O ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro confirma que os alvos seriam o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal e sinaliza que as tropas garantiriam a segurança dos manifestantes”, escreve a PF. Mais adiante, os investigadores concluem que “os protestos convocados não se originavam da mobilização popular, mas sim da arregimentação e do suporte direto do grupo ligado ao então presidente Jair Bolsonaro como estratégia de demonstração de ‘apoio popular’ aos intentos criminosos”.
A decisão de Moraes aponta também que um dos principais movimentos do bolsonarismo para tentar demonstrar fraude nas urnas foi possivelmente forjado. Conforme o despacho do ministro e relatório de investigação da PF, o núcleo de investigados, incluindo Mauro Cid e hackers, produziram um material apresentando falsas vulnerabilidades nas urnas fabricadas antes de 2020. Depois, como suposta estratégia de difusão, os investigados teriam repassado o conteúdo ao argentino Fernando Cerimedo, que viralizou as falsas acusações em uma live realizada em 4 de novembro de 2022, dias após a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em segundo turno.
A live de Cerimedo foi fartamente difundida pelo bolsonarismo e Mauro Cid chamou de “nosso pessoal” os responsáveis pela elaboração do conteúdo que pretendia solapar o resultado eleitoral. “O conteúdo da live foi resumido e propagado por vários integrantes da organização, inclusive por militares. Em seguida, visando burlar as ordens judiciais de bloqueio, os investigados disponibilizaram o conteúdo em servidores localizados fora do país”, diz a decisão de Moraes, replicando trecho do relatório policial.
O conteúdo foi endereçado ao general Paulo Sérgio Nogueira e encaminhado por Mauro Cid via WhatsApp ao general Braga Neto.
Em outros trechos, Mauro Cid conversa com militares e afirma, em diversos momentos, ao longo de meses, que o grupo não encontrou fraudes nas urnas eletrônicas. Havia uma rede de contatos que produziu diversos relatórios apontando falsas vulnerabilidades nas urnas, envolvendo desde estatísticos até hackers.
“Não tem nada! A gente já conversou com esse cara aí que fez essa…essa análise aí. E…tá difícil tirar alguma coisa. Tá difícil ter alguma prova (sic)”, escreveu Cid, em mensagem de WhatsApp no dia 3 de novembro de 2022.
Na resposta, o militar Hélio Ferreira Lima, que havia compartilhado com Cid um relatório em inglês sobre falsas vulnerabilidades, aparentemente sugere ruptura institucional.
“Jogo a toalha então? Eu sei que tentaram levar até o fim sem quebra institucional, mas foi tudo fora da lei do lado de lá. Chega, irmão!”, escreveu Ferreira Lima.
Na sequência, Cid afirma que “a gente tem cara infiltrado em tudo quanto é lugar monitorando e passando pra gente informações”. Cid ainda menciona que o teste de integridade, realizado no dia da eleição, não apontou nenhum problema, mas ainda assim mantinha a busca por produzir algo que pudesse macular o pleito.
“Eu sou dos mais interessados em encontrar alguma coisa. O presidente também”, escreveu Cid. Em uma conversa com o coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, em que tratam sobre as propaladas inconsistências, o militar alerta: “Espero que saibam o que estão fazendo”.
“Eu também, senão estou preso”, responde Cid, que acabaria preso.