Advogada precisou de duas cirurgias, incluindo a reconstrução do quadril, após ficar presa nas ferragens. A dor, contudo, não supera a de perder amiga e a urgência em readaptar a vida após desfecho trágico
Mesmo com os vidros quebrados e presa em ferragens que se transformaram em gaiola, a advogada Nalva Longaretti Gatto, 46 anos, permaneceu o tempo todo consciente e lembra com clareza das cenas de horror que viveu antes, durante e depois do acidente de ônibus de turismo com gaúchos que deixou dois mortos e feridos na estrada de Paso de Jama, no Chile, em 25 de abril de 2024.
Sentada nos bancos da frente com o marido, o cirurgião dentista Cristiano Gatto, ela viu quando o veículo pareceu perder os freios e gritou para que os passageiros se segurassem antes do ônibus tombar duas vezes, por volta das 20h no horário local (21h em Brasília). A perícia da polícia chilena não foi concluída até o momento, o que não permite confirmar o que motivou o acidente.
Enquanto isso, Nalva se recupera dos ferimentos em casa, em David Canabarro, no norte gaúcho, com ajuda de medicação e fisioterapia. Ao todo, ela passou 22 dias internada e precisou fazer duas cirurgias, incluindo a reconstrução do acetábulo e quadril, com pino e placa. Ela não poderá colocar o pé direito no chão até outubro.
— Agora, por causa das dificuldades de locomoção, eu fico só em casa, não estou mais trabalhando. Meu marido também está trabalhando menos, (o acidente) mudou a nossa vida totalmente. Preciso de ajuda para tudo e vivo um dia de cada vez — disse ela, em conversa por telefone.
Forçada pelo acidente, a redução no ritmo de trabalho é bem diferente do que sonhara com o marido antes do desfecho trágico da viagem. Nalva e Cristiano descobriram nas excursões uma forma de conhecer novos lugares e faziam o primeiro passeio sem os filhos, que estão prestes a se formar na faculdade. Eles foram acompanhados do casal de amigos Darci e Elenice Pretto, que foi uma das duas vítimas do tombamento.
— Decidimos comprar (a excursão) porque sempre sonhamos em conhecer aquela região e, de fato, a viagem estava sendo maravilhosa. Íamos parando, conhecendo os lugares sem pressa. Mas acabou se tornando um pesadelo, jamais imaginávamos que ia acontecer o que aconteceu — conta Nalva.
Foi o casal que comentou sobre a viagem com Darci e Elenice Pretto, que também se interessaram e compraram o passeio. Os quatro foram juntos até Lajeado, onde embarcaram na excursão na noite de 22 de abril e partiram em direção à Argentina.
Antes do ônibus tombar, o grupo de 42 pessoas — sendo 39 turistas, uma guia e dois motoristas — já havia passado por Salta e Jujuy, na Argentina, e seguia viagem até São Pedro do Atacama, no Chile, onde os passageiros ficariam hospedados duas noites para, então, retornar ao Rio Grande do Sul.
Conforme Nalva, o ônibus passou o marco fronteiriço de Paso de Jama já perto das 19h, pouco antes da rota ser fechada na alfândega entre os dois países. A estrada, que já tem pouco movimento normalmente, corta o deserto do Atacama e demanda atenção dos motoristas por causa do declive: do início da cordilheira até San Pedro de Atacama, são 42 quilômetros de descida e uma mudança drástica na altitude — quem transita por ali desce de 4,8 mil metros para 2,4 mil metros em relação ao nível do mar.
Durante o percurso em território chileno, alguns dos passageiros começaram a passar mal por causa da mudança de altitude. Segundo Nalva, uma breve parada foi feita pouco antes do acidente para a substituição do motorista, que também parecia se sentir desconfortável com a pressão do declive.
Como ela e o marido estavam nos primeiros bancos, puderam acompanhar o desenrolar da situação. No km 27, a 27 quilômetros do marco da cordilheira, o veículo começou a andar mais rápido que o esperado.
— Ficamos com a impressão de que o ônibus não tinha freio porque começou a descer em uma velocidade exorbitante, já não conseguiu fazer a curva e foi tombando. Nessa hora eu gritei no impulso: coloquem o cinto que vamos bater — lembra Nalva.
O ônibus caiu em uma área de escape, foi “dançando” em meio ao deserto e capotou duas vezes.
— Foi aterrorizante. Eram oito horas da noite, só tinha a lua cheia e o deserto do Atacama. Só não morreu mais gente porque tivemos a graça de, quando estávamos tombando, vir em nossa direção uma viatura da polícia. Não sei para onde estavam indo, mas sei que acionaram os primeiros socorros. Foi uma benção porque ninguém tinha chip para fazer ligação naquele país, a estrada estava fechada e passavam poucos carros — lembra Nalva.
Enquanto os passageiros eram resgatados, Nalva e Cristiano tentavam se segurar nos primeiros bancos do ônibus. A advogada ficou presa nas ferragens da frente do veículo (assista abaixo).
— Estávamos de cinto na frente e tínhamos muito medo de cair pra fora, porque depois que os vidros quebraram não tinha mais nada segurando a gente. Caiu a parte do bagageiro e as ferragens da frente entraram no ônibus, então eu fiquei presa em uma espécie de gaiola por várias horas, até que os bombeiros cortassem as ferragens para me tirarem dali. Fiquei consciente o tempo todo e fui uma das últimas a sair — conta.
Quem estava na viagem perdeu os pertences, desde roupas até celulares, o que dificultou o contato entre o grupo. Nalva, por exemplo, foi levada a um hospital de Calama, cidade com cerca de 140 mil habitantes onde havia hospitais mais equipados para atender os feridos de maior gravidade.
Pouco antes, ela e Cristiano já haviam perdido o contato. Ele foi atendido em um posto de saúde de San Pedro de Atacama, de pouco mais de 5 mil habitantes. Gatto, por exemplo, recebeu o atendimento de médicos portugueses que se voluntariaram a auxiliar os feridos.
O casal só foi se encontrar 24 horas depois do acidente, após uma busca ativa de Cristiano por Nalva em hospitais de Calama. A advogada passou pela primeira cirurgia às 10h de 26 de abril, sozinha.
— Até então nenhum sabia do outro, se tinha sobrevivido ou não. As informações estavam muito desencontradas, ninguém sabia o que tinha acontecido, quem tinha falecido. No fim da tarde de sexta-feira (26 de abril) eu estava na UTI do Hospital Del Cobre, em Calama, quando chegou o Cristiano, a guia e o Darci Pretto. Foi aí que me contaram que Elenice tinha morrido. Foi um momento crítico, de desespero e revolta — lembra.
Nalva permaneceu internada por 16 dias em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) no Chile e mais seis dias no Hospital de Clínicas de Passo Fundo. Agora, se recupera em casa, ao lado da família.
Depois do acidente, o condutor do ônibus, Fábio Pillar Martins, foi impedido de sair do Chile enquanto durassem as investigações sobre o acidente. Em 28 de junho, uma decisão do Judiciário chileno autorizou a suspensão da medida cautelar e permitiu que o motorista retornasse ao Brasil por dois meses sob a condição de que deixasse uma garantia de 500 mil pesos chilenos — o equivalente a R$ 3 mil no câmbio atual — e se comprometesse a retornar ao Chile dentro de 60 dias.
A excursão era organizada pela empresa Vip Turismo, de Lajeado, em ônibus fretado pela DH Transportes, de Santa Maria, responsável pela viagem. Diego Souto, proprietário da DH Transportes, confirmou à reportagem que o motorista foi liberado para voltar ao Brasil e que teve acompanhamento do consulado brasileiro no Chile e de advogados, o que permitiu o retorno ao país. A perícia do ônibus não foi concluída até o momento.
A empresa Vip Turismo informou que realiza excursões ao destino desde 2019 e que todos os passageiros e motoristas retornaram do Chile.
— Nesse momento estamos auxiliando junto ao seguro HDI. Durante o período que permaneceram no Chile, foi dada toda a assistência, com hospedagem, alimentação completa, transporte e pagamento de passagens aéreas para retorno — afirmou a gerente Shaiane Fagundes.
O Itamaraty foi consultado, mas não respondeu aos pedidos de comentário até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto.
Enquanto isso, Nalva reaprende a se movimentar. O acidente que trouxe a dor do luto pela amiga Elenice e pelos ferimentos nas pernas, fez também com que revisse a forma de encarar a vida.
— Com o acidente, o fêmur empurrou meu quadril e levou o nervo ciático junto, então estou com dificuldade em fazer movimentos simples do pé. Hoje eu olho e vejo como isso era algo tão simples, eu fazia sem perceber… Cada vitória na fisioterapia, cada movimento a mais é algo enorme, gratificante. Isso faz com que a gente reveja tudo. É um ressignificado que a gente dá. Passa um filme na cabeça — terminou.