Armas que não foram recolhidas e dificuldade na fiscalização são apontados como fatores que contribuíram para a morte de quase 20% das vítimas, apesar de terem procurado ajuda
Na tarde de 16 de março de 2021, Teresinha Maria Sost, moradora de Alecrim, município de 5,7 mil habitantes no noroeste do Rio Grande do Sul, telefonou desesperada para a filha mais velha, Micheli Sost Barbosa. Queria ajuda para buscar a polícia. Contou que o ex-companheiro havia mais uma vez descumprido a medida protetiva, retornado para casa e não queria mais sair de lá. Naquele dia, além de ameaçar lhe desferir 30 facadas, o homem agrediu os filhos, de seis e nove anos.
Micheli entrou em contato com o Conselho Tutelar, que foi até a casa com a Brigada Militar. No início da noite, Tere, como era conhecida, viajou com as crianças 46 quilômetros entre as ruas de chão batido da Vila Esperança, onde residia, e a delegacia de plantão mais próxima, no município de Santa Rosa. Lá reiterou que havia silenciado sobre o descumprimento por medo. Já havia dito num registro anterior que o companheiro lhe esganara várias vezes e que apanhava quieta. Aquela era a sexta vez que Teresinha relatava à polícia que o homem dizia que iria matá-la. Dez meses e 12 dias depois, na manhã de 28 de janeiro de 2022, após duas décadas de violências repetidas, ele cumpriu a promessa.
Das 107 vítimas de feminicídio em 2022 no Rio Grande do Sul, 21, ou seja, quase 20%, já tinham procurado ajuda e pedido medida protetiva contra o agressor. Esse número dobrou em relação ao ano anterior, quando foram 10 vítimas de feminicídio com medida protetiva. São mulheres que conseguiram romper o silêncio, mas, mesmo assim, tiveram suas vidas ceifadas no desfecho que representa o ápice da violência doméstica.
Nesta reportagem, buscamos compreender o que falhou para que os autores, além de aterrorizarem, perseguirem, agredirem, violentarem de forma psicológica e sexual e prometerem exterminar as vítimas, conseguissem concretizar as ameaças.
Na tentativa de encontrar essas respostas, elaboramos um questionário dividido em cinco partes. As perguntas foram formuladas a partir de entrevistas com familiares de mulheres assassinadas, vítimas de violência doméstica que já tiveram medida protetiva, sobreviventes de tentativa de feminicídio, entidades que atuam na proteção e na defesa dos direitos das mulheres, além de membros do Judiciário e do Ministério Público.
Na primeira parte do questionário, buscamos respostas sobre o crime e os envolvidos, como o município onde aconteceu, data, dia da semana, arma empregada, nome e idade da vítima e situação do autor — se foi preso ou cometeu suicídio, por exemplo. Numa segunda etapa, reunimos as informações sobre a medida protetiva, como o tempo entre a decisão judicial e o crime, e se o agressor já havia descumprido a determinação de afastamento.
Tentamos compreender também quais os fatores de risco envolviam essa relação: se o autor já havia ameaçado a vítima, se tinha verbalizado que iria matá-la e se já havia tentado, se possuía acesso a arma de fogo, e se a mulher relatava ter medo de morrer. Mapeamos, por fim, a rede de proteção, com perguntas sobre qual tipo de atendimento está disponível nesses municípios e quais serviços foram acessados pelas vítimas.
As respostas para esses questionamentos vieram dos registros policiais, dos processos judiciais, de depoimentos de familiares e de postagens em redes sociais feitas por essas mulheres silenciadas. Nem todas as indagações puderam ser esclarecidas. Mas nos deparamos com alguns pontos centrais: a descrença na palavra da vítima, armas de fogo que não foram recolhidas mesmo depois de as mulheres terem sinalizado a existência delas, a dificuldade na fiscalização das medidas — dependendo de a mulher denunciar o descumprimento — e agressores que não foram presos, mesmo após descumprirem a ordem, além dos gargalos da rede de proteção.
A aplicação de medidas protetivas cresceu no Estado — foram 136,4 mil no ano passado, o que representa 33,5% a mais do que em 2021. Ou seja, uma média de 373 determinações por dia. Mas, no caso dessas vítimas de feminicídio, as ações não foram suficientes para protegê-las. Mesmo após clamarem por socorro e suplicarem providências, como chegou a verbalizar uma delas, essas mulheres tiveram as vidas encerradas do modo que mais temiam: pelas mãos de seus agressores.
Esta reportagem foi produzida ao longo do curso Jornalismo investigativo: da hipótese à construção da narrativa, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), com apoio da Embaixada e dos Consulados dos EUA no Brasil. A repórter Leticia Mendes teve mentoria da jornalista Angelina Nunes, coordenadora do Programa Tim Lopes.
Fonte: Polícia Civil e Poder Judiciário do RS
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Polícia Civil