Unidades da Capital e do Interior têm 385 em atendimento, enquanto em 2019 eram 1.252
De 2019 para cá, a população de adolescentes na Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) do Rio Grande do Sul despencou 69%. Em maio daquele ano, eram 1.252 cumprindo medida socioeducativa em unidades da Capital e do Interior, enquanto em 2023 são 385. Em Porto Alegre, a redução é ainda mais expressiva: 78%.
Advogada e socióloga, professora da Faculdade de Direito da UFRGS, e coordenadora do Observatório de Pesquisa em Violência e Juventude, Ana Paula Motta Costa vê de um lado ações positivas, como políticas públicas que buscam reduzir a desigualdade e medidas aplicadas pelo Judiciário para minimizar a superlotação das unidades, como, de outro, aspectos que envolvem a própria violência urbana.
— A medida socioeducativa é a ponta do iceberg. Quando um adolescente se torna autor de um ato infracional grave, que termine em internação, já houve uma série de acontecimentos na vida dele educacional, social, familiar. Então, toda a política a longo prazo vai repercutindo lá adiante na socioeducação. Não necessariamente imediatamente. Se aumenta o nível de escolaridade, vai projetar melhoras. Se aumenta possibilidade de sobrevivência com relação à renda, vai melhorar. A medida é o reflexo de tudo que está errado. O que nos preocupa mais é a relação da redução com a mortalidade de jovens — afirma Ana Paula.
A especialista se refere a um período marcado por barbáries, especialmente na Grande Porto Alegre. Conflitos armados nos anos de 2016 e 2017 entre grupos criminosos envolviam esquartejamentos e chacinas. As execuções são apontadas como fatores que impactaram nos números de adolescentes que chegaram à Fase nos anos seguintes. Em 2016, foram 2.885 pessoas assassinadas no Estado, dessas 792 mortes ocorreram na Capital. Nas pesquisas que integra estuda o que chama de juvenicídio, a precarização da vida que leva à morte de jovens.
— No Brasil, o pico de homicídios ocorreu em 2017, mas em Porto Alegre foi antes. Vários fatores estão relacionados a isso, entre eles a guerra de facções. Os adolescentes estão no meio da guerra, como se fossem soldados. Houve uma omissão de intervenção do Estado, no sentido protetivo a esses adolescentes, que estão entre os mortos. Houve redução da população jovem envolvida com essa violência já lá em 2016 — diz Ana Paula.
Nos anos de 2016 e 2017, segundo uma das pesquisas do Observatório de Pesquisa em Violência e Juventude, 465 pessoas com idades entre 12 e 21 anos foram assassinados na Capital. Naquele mesmo período, em novembro de 2016, havia 724 adolescentes na Fase de municípios que integram a Região Metropolitana. No início deste ano, eram 119, o que significa redução de 83,6%.
A redução de crimes, como assassinatos, latrocínios(roubos com morte), e assaltos nos últimos anos no Estado é apontada pela Fase como um dos fatores de impacto. Policiais ouvidos por GZH apontam, por exemplo, a diminuição dos roubos de veículos, na qual os adolescentes costumavam ser usados pelas facções. Por outro lado, reconhecem que jovens seguem cooptados por criminosos. No tráfico, os adolescentes atuam nas chamadas “biqueiras”, os pontos de vendas de drogas.
— Muito se fala informalmente, mas não tem ainda estudo científico que possa comprovar. Aparentemente, não é uma situação só gaúcha ou de Porto Alegre. A redução aqui na Capital é bem mais acentuada. O fato importante é de que também reduziu o número de ingressos. A redução nesses anos é de 67% a menos adolescentes ingressando. É muita coisa. Mas não percebemos essa redução proporcional na criminalidade. Muitos territórios ainda vivem essa guerra de facções — analisa o defensor público Rodolfo Lorea Malhão.
Em 2019, a Fase estava superlotada, com defasagem de 275 vagas de internação. No ano seguinte, a realidade já era diferente e a fundação alcançou 2020 com 110 vagas disponíveis — 32 de internação e 78 de semiliberdade. Mas ainda havia centros, especialmente no Interior, superlotados. Foi naquele ano que o Superior Tribunal Federal determinou o fim da lotação das unidades socioeducativas. Atualmente, a Fase opera com 41% da capacidade — restam 554 vagas, 425 delas de internação.
Houve ainda redução da população jovem no Estado, segundo as estimativas populacionais do Departamento de Economia e Estatística (DEE). De 2011 a 2021, houve diminuição de 147.178 (16,5%) habitantes com idade entre 15 e 19 anos no RS. Um dos períodos de maior queda se deu entre 2020 e 2021 — foram 24.572 a menos. Dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) apontam que a apreensão de adolescentes também caiu nos últimos anos no Estado. Em 2019, foram 697 adolescentes em casos de flagrante ou em cumprimento de mandados. Já o ano passado encerrou-se com 365 apreensões no total.
A nível nacional um dos aspectos estudados é de que a redução das apreensões, segundo o CNJ, esteja vinculada no Brasil às práticas que “violam direitos” e que não chegam a ser levados ao conhecimento do Estado, e que isso esteja contribuindo para a queda do número de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.
— Na questão da violência, não existe uma causa simples, direta. Pode ter ajudado (a redução dos indicadores), mas isso está numa cadeia de acontecimentos. A minha hipótese como pesquisadora é de que essas coisas todas juntas estão agindo. Se de um lado tenho coisas boas que estão produzindo efeitos. Por outro lado, tenho essas que precisam ser pesquisadas — pondera Ana Paula.
Em Porto Alegre, em 2019 eram 556 atendidos pela Fase, enquanto os dados de maio de 2023 indicam somente 122. Desses, 10 estão em semiliberdade e os demais com diferentes tipos de internação (provisória, sem ou com possibilidade de atividade externa, por exemplo). A unidade da Capital com maior número de internos está localizada na Padre Cacique, com 36. Quando isolamos somente os municípios do Interior essa redução é de 62%, de 696 para 263. Pelotas, no sul do Estado, concentra o maior número de adolescentes, com 44.
O tráfico ainda está entre os atos infracionais que mais levam à internação de adolescentes. No Estado, é o terceiro delito que mais aparece — em primeiro lugar está o homicídio e em segundo os assaltos, que também, muitas vezes envolvem a ligação com o crime organizado.
— O que se percebe é uma juventude que a maior parte é do tráfico, já vinham em trabalho infantil, lavagem de carros, ou entregas, na construção civil, e eventualmente em plantações, na agricultura. Alguns não têm escolaridade nenhuma e outros têm esse perfil de evasão entre o 5º e 6º ano. São múltiplas vulnerabilidades. Um contexto social, racial, empobrecido. Precisamos pensar o que estamos fazendo com essa juventude. Estão sendo mortos em guerra de facção, ou vão acabar num presídio — afirma a juíza Karla Aveline, titular do 3º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre.