Militar que desapareceu durante resgate de gestante rastejou por 11 horas até encontrar abrigo - Agora Já -

Militar que desapareceu durante resgate de gestante rastejou por 11 horas até encontrar abrigo



Sargento aposentado caiu em ribanceira enquanto ajudava no resgate de gestante ilhada em zona rural do município do norte gaúcho

Foto: Sargento Ornel (ao fundo, de jaqueta marrom) com o grupo que atuou no salvamento de Liliane (de capuz amarelo) Rosana Brizola / Arquivo pessoal
12 de maio de 2024

O sargento aposentado João Luiz Ornel dos Santos, 62 anos, viveu 36 horas de frio, medo e fé em São José do Herval, no norte gaúcho. Ele caiu de uma ribanceira enquanto fazia o resgate de uma mulher grávida no interior do município de 1,9 mil habitantes no fim da tarde de 3 de maio e precisou rastejar por 11 horas no escuro e no barro até encontrar abrigo.

A história parece roteiro de cinema com direito a aventura, resgate emocionante e final feliz. Aposentado há 15 anos, o sargento Ornel, como é conhecido, se uniu à Brigada Militar na tarde da última sexta-feira (3) para auxiliar no resgate de Liliane Severgnini Pinheiro, 28 anos, grávida de quase 39 semanas que estava prestes a dar à luz ao pequeno Théo.

Liliane vive na comunidade de São Sebastião que, apesar de não ter sido afetada pela chuva, ficou isolada depois que deslizamentos de terra interromperam a estrada que liga o local à área urbana de São José do Herval. O município gaúcho teve pelo menos 10 casas destruídas por deslizamentos e trabalha para desobstruir estradas e auxiliar as famílias desabrigadas.

Como Liliane estava prestes a ter a criança e vinha de uma gravidez de risco, familiares pediram ajuda à Secretaria Municipal de Saúde para resgatar a mulher a fim de que pudesse ter o filho em segurança em um hospital. A Brigada Militar, então, pediu ajuda do sargento Ornel, que atendeu ao chamado. Além de “gostar de mato”, como ele mesmo diz, conhece bem a região por causa dos 43 anos que passou como militar de Fontoura Xavier e São José do Herval.

Feito isso, o homem saiu de casa às 13h de 3 de maio e entrou na mata em direção à comunidade de São Sebastião junto de outras 10 pessoas, que incluíam uma tenente da Brigada Militar, a secretária municipal de saúde, uma equipe de médica e enfermeira, e voluntários para ajudar no deslocamento de Liliane.

Conhecedor daquelas terras, Ornel foi à frente, abrindo caminho na mata para a comitiva que seguia preparada para fazer o parto da grávida, caso necessário. A missão era encontrar Liliane e o marido na metade do caminho, pela mata, e acompanhar o grupo de volta ao ponto inicial, para então levar a grávida direto ao hospital.

A primeira parte do plano deu certo: eles encontraram a mulher, que foi boa parte do caminho carregada pelos voluntários em uma maca e acompanhada pelo marido na trilha aberta em mato fechado para retornar à cidade. Por volta das 18h, porém, um passo em falso derrubou o sargento Ornel ribanceira abaixo. Ele resvalou no chão molhado, já incapaz de absorver a água após dias de chuva ininterrupta.

— Fui na frente abrindo caminho e, numa certa altura, escorreguei e o barro me levou. Caí na beira do rio. Já era escuro, quase seis da tarde, e perdi o contato. Eu gritava e dava tiro, mas ninguém me ouvia. Aí eu tive certeza que eles iam se perder porque não conheciam o mato, fiquei o tempo todo pensando o que é que eles iam fazer — contou Ornel, em entrevista por telefone.

Grupo não viu momento da queda

Rosana Brizola, que é primeira-dama e secretária municipal de saúde de São José do Herval, conta que o grupo não viu o momento da queda do sargento Ornel. Como ele ia na frente, abrindo caminho, quem vinha atrás imaginou que o homem já estivesse a salvo com as pessoas que esperavam no fim da trilha improvisada.

Ao todo, a equipe de resgate percorreu 12 quilômetros a pé, em mata fechada e em declive, sob a chuva. Foram seis horas de trabalho ininterrupto. Ao voltar à cidade e respirar aliviada, porém, Rosana e sua equipe se deram conta que o sargento aposentado não retornara do percurso. Foi então que começou uma nova e longa jornada: as buscas pelo homem.

— Foi muito difícil, a pior sensação da minha vida. Quando saímos da mata e vimos que o Ornel não estava ali, começamos a pedir se ele tinha chegado, onde ele estava. Imediatamente a tenente acionou a equipe e chamamos os voluntários do município, que conheciam a mata, para começar as buscas. Eles ficaram até as 4h circulando pelo mato, voltaram no dia seguinte e nada — lembra Rosana.

Liliane Pinheiro / Arquivo pessoal
Théo Vitório nasceu às 11h02min de 4 de maio de 2024Liliane Pinheiro / Arquivo pessoal

Enquanto isso, a grávida Liliane era socorrida e levada ao Hospital Frei Clemente, em Soledade, e depois ao Hospital de Clínicas de Passo Fundo, onde as contrações que sentia durante o caminho pela mata se transformaram em trabalho de parto, e ela deu à luz ao pequeno Théo, às 11h02 de sábado (4).

No momento em que mãe e filho começavam uma nova vida juntos, Ornel enfrentava o seu destino e lutava contra o medo e a escuridão em meio ao barro. Perdido na mata, passou a se orientar pelo som do rio.

“Fui rastejando e pedindo a Deus para estar no caminho certo”

Depois de resvalar ribanceira abaixo, o sargento Ornel caiu no barro e demorou para entender o que tinha acontecido. Ele conta que sentia muita dor na perna esquerda e nas costelas — tanta, que até julgou ter quebrado algum osso. Alguns segundos depois, porém, sob a chuva, tocou o corpo e viu que, apesar da dor, não parecia ter quebrado nada. Era o momento de começar uma odisseia solitária em busca de uma casa que sabia existir às margens do rio que costeava o morro.

— Eu precisei rastejar porque não conseguia ficar de pé, o barro me arrastava. Já sabia que tinha uma casa lá embaixo, mas não sabia se era para frente ou para trás de onde eu estava. Só escutava o som da cachoeira e decidi ir no sentido do rio. Pensava: a casa fica na beira do rio, quando eu chegar lá, me localizo. Fui rastejando e pedindo a Deus para estar no caminho certo — lembra ele.

A escuridão total à frente dificultou o processo: mesmo que Ornel já tivesse se perdido no mato outras vezes, nunca fora sem lanterna. Nesse caso, a audição foi essencial para se guiar em meio ao barro e a chuva. Por volta do que parecia ser às 5h, ele avistou a casa que tanto buscava. O local foi evacuado em meio ao risco de deslizamento: os moradores saíram dias antes também pelo mato e deixaram veículos, roupas e até comida nas panelas para trás.

O alívio veio quando conseguiu entrar na casa, abriu uma janela e encontrou um isqueiro para acender o fogão à gás. Em segurança na casa, tirou as roupas molhadas, vestiu roupas limpas e acendeu o fogão a lenha para se aquecer e driblar o frio que sentiu ao longo da madrugada. Enquanto isso, a cabeça estava longe:

— Desde que eu caí, só pensava no meu pessoal no meio do mato. Eles não conheciam o caminho, tinha lugares que o peral era de 500 metros de altura. Só pensava que eles precisavam sair de lá, precisava dar certo — conta, antes de saber que o parto de Liliane tinha acontecido e Théo estava prestes a chegar aos braços da mãe.

O resgate do resgate

A essa altura, a notícia do desaparecimento já se espalhara e muitos temiam pela morte do sargento em meio ao risco de deslizamentos de terra e a altura das ribanceiras na estrada que levava São José do Herval a São Sebastião.

Por volta das 9h de domingo (5), Ornel se sentou ao sol para descansar depois de andar pela área para entender como encontraria o caminho de volta para casa. Foi aí que ouviu um apito conhecido: era o barulho usado pelos agentes da Brigada Militar. Em resposta, começou a dar tiros para que os colegas identificassem o seu paradeiro.

— Quando eu vi choveu de colega meu, começaram a gritar e correr para o meu lado. Foi uma emoção muito grande, alegria, não sabia se chorava, se dava risada, eu abraçava eles, eles me abraçavam, choravam… foi uma alegria muito grande — relatou Ornel.

Com o grupo, o sargento aposentado conseguiu sair do local e voltou para Soledade, onde vive com a esposa Loraci e uma filha, depois de 36h de desaparecimento. Em casa, a família o esperava com aflição.

— Eu comecei a berrar quando descobri que eles tinham encontrado meu marido. Os vizinhos vieram achando que eu estava gritando porque ele tinha morrido, mas, não. Comecei a dizer: ele tá vivo, ele tá vivo. Chorei mais do que antes, quando era de ansiedade e nervosismo. O tempo todo eu sentia um calor em mim e tinha muita fé que ele fosse voltar para casa — relatou Loraci.

— Quando eu estava no meio do barro, no frio e no escuro, eu só pensava comigo para me manter calmo e não me apavorar. Medo a gente tem, mas eu fiquei o tempo todo falando comigo: “vamos Ornel, você não pode parar”. O que me acalmou foi a minha fé, pedia para Deus e para Nossa Senhora de Fátima me ajudar. Pedia: “me proteja e me oriente para chegar em casa” — completou o sargento aposentado, que é católico e vice-presidente da igreja do bairro onde mora em Soledade.

Quando chegou em casa, o sargento recebeu a notícia: toda a comitiva voltara para casa e Liliane já estava com Théo nos braços, em Passo Fundo. O menino, inclusive, recebeu um segundo nome: “Vitório”, por causa das circunstâncias que possibilitaram o seu nascimento. Tanto a mãe quanto a criança, que nasceu com 3,5kg, estão saudáveis após um parto de cesárea.

A história, enfim, teve final feliz em meio à maior tragédia climática enfrentada pelo RS. Apesar do sofrimento coletivo, ao voltar das suas horas desafiadoras na mata, Ornel conta que recebeu de presente uma “data de renascimento” — e já planeja uma festa para celebrar os 30 anos de casado, em agosto, “se Deus quiser”, como diz.

Fonte : GZH 
Foto : Rosana Brizola / Arquivo pessoal

Equipe transportou gestante em maca por 12km nos morros de São José do Herval em 3 de maio
Rosana Brizola / Arquivo pessoal

Equipe reunida ao fim da operação, já sem a presença de Ornel
Rosana Brizola / Arquivo pessoal


(55) 3375-8899, (55) 99118-5145, (55) 99119-9065

Entre em contato conosco

    Copyright 2017 ® Agora Já - Todos os direitos reservados