Sargento aposentado caiu em ribanceira enquanto ajudava no resgate de gestante ilhada em zona rural do município do norte gaúcho
O sargento aposentado João Luiz Ornel dos Santos, 62 anos, viveu 36 horas de frio, medo e fé em São José do Herval, no norte gaúcho. Ele caiu de uma ribanceira enquanto fazia o resgate de uma mulher grávida no interior do município de 1,9 mil habitantes no fim da tarde de 3 de maio e precisou rastejar por 11 horas no escuro e no barro até encontrar abrigo.
A história parece roteiro de cinema com direito a aventura, resgate emocionante e final feliz. Aposentado há 15 anos, o sargento Ornel, como é conhecido, se uniu à Brigada Militar na tarde da última sexta-feira (3) para auxiliar no resgate de Liliane Severgnini Pinheiro, 28 anos, grávida de quase 39 semanas que estava prestes a dar à luz ao pequeno Théo.
Liliane vive na comunidade de São Sebastião que, apesar de não ter sido afetada pela chuva, ficou isolada depois que deslizamentos de terra interromperam a estrada que liga o local à área urbana de São José do Herval. O município gaúcho teve pelo menos 10 casas destruídas por deslizamentos e trabalha para desobstruir estradas e auxiliar as famílias desabrigadas.
Como Liliane estava prestes a ter a criança e vinha de uma gravidez de risco, familiares pediram ajuda à Secretaria Municipal de Saúde para resgatar a mulher a fim de que pudesse ter o filho em segurança em um hospital. A Brigada Militar, então, pediu ajuda do sargento Ornel, que atendeu ao chamado. Além de “gostar de mato”, como ele mesmo diz, conhece bem a região por causa dos 43 anos que passou como militar de Fontoura Xavier e São José do Herval.
Feito isso, o homem saiu de casa às 13h de 3 de maio e entrou na mata em direção à comunidade de São Sebastião junto de outras 10 pessoas, que incluíam uma tenente da Brigada Militar, a secretária municipal de saúde, uma equipe de médica e enfermeira, e voluntários para ajudar no deslocamento de Liliane.
Conhecedor daquelas terras, Ornel foi à frente, abrindo caminho na mata para a comitiva que seguia preparada para fazer o parto da grávida, caso necessário. A missão era encontrar Liliane e o marido na metade do caminho, pela mata, e acompanhar o grupo de volta ao ponto inicial, para então levar a grávida direto ao hospital.
A primeira parte do plano deu certo: eles encontraram a mulher, que foi boa parte do caminho carregada pelos voluntários em uma maca e acompanhada pelo marido na trilha aberta em mato fechado para retornar à cidade. Por volta das 18h, porém, um passo em falso derrubou o sargento Ornel ribanceira abaixo. Ele resvalou no chão molhado, já incapaz de absorver a água após dias de chuva ininterrupta.
— Fui na frente abrindo caminho e, numa certa altura, escorreguei e o barro me levou. Caí na beira do rio. Já era escuro, quase seis da tarde, e perdi o contato. Eu gritava e dava tiro, mas ninguém me ouvia. Aí eu tive certeza que eles iam se perder porque não conheciam o mato, fiquei o tempo todo pensando o que é que eles iam fazer — contou Ornel, em entrevista por telefone.
Rosana Brizola, que é primeira-dama e secretária municipal de saúde de São José do Herval, conta que o grupo não viu o momento da queda do sargento Ornel. Como ele ia na frente, abrindo caminho, quem vinha atrás imaginou que o homem já estivesse a salvo com as pessoas que esperavam no fim da trilha improvisada.
Ao todo, a equipe de resgate percorreu 12 quilômetros a pé, em mata fechada e em declive, sob a chuva. Foram seis horas de trabalho ininterrupto. Ao voltar à cidade e respirar aliviada, porém, Rosana e sua equipe se deram conta que o sargento aposentado não retornara do percurso. Foi então que começou uma nova e longa jornada: as buscas pelo homem.
— Foi muito difícil, a pior sensação da minha vida. Quando saímos da mata e vimos que o Ornel não estava ali, começamos a pedir se ele tinha chegado, onde ele estava. Imediatamente a tenente acionou a equipe e chamamos os voluntários do município, que conheciam a mata, para começar as buscas. Eles ficaram até as 4h circulando pelo mato, voltaram no dia seguinte e nada — lembra Rosana.
Enquanto isso, a grávida Liliane era socorrida e levada ao Hospital Frei Clemente, em Soledade, e depois ao Hospital de Clínicas de Passo Fundo, onde as contrações que sentia durante o caminho pela mata se transformaram em trabalho de parto, e ela deu à luz ao pequeno Théo, às 11h02 de sábado (4).
No momento em que mãe e filho começavam uma nova vida juntos, Ornel enfrentava o seu destino e lutava contra o medo e a escuridão em meio ao barro. Perdido na mata, passou a se orientar pelo som do rio.
Depois de resvalar ribanceira abaixo, o sargento Ornel caiu no barro e demorou para entender o que tinha acontecido. Ele conta que sentia muita dor na perna esquerda e nas costelas — tanta, que até julgou ter quebrado algum osso. Alguns segundos depois, porém, sob a chuva, tocou o corpo e viu que, apesar da dor, não parecia ter quebrado nada. Era o momento de começar uma odisseia solitária em busca de uma casa que sabia existir às margens do rio que costeava o morro.
— Eu precisei rastejar porque não conseguia ficar de pé, o barro me arrastava. Já sabia que tinha uma casa lá embaixo, mas não sabia se era para frente ou para trás de onde eu estava. Só escutava o som da cachoeira e decidi ir no sentido do rio. Pensava: a casa fica na beira do rio, quando eu chegar lá, me localizo. Fui rastejando e pedindo a Deus para estar no caminho certo — lembra ele.
A escuridão total à frente dificultou o processo: mesmo que Ornel já tivesse se perdido no mato outras vezes, nunca fora sem lanterna. Nesse caso, a audição foi essencial para se guiar em meio ao barro e a chuva. Por volta do que parecia ser às 5h, ele avistou a casa que tanto buscava. O local foi evacuado em meio ao risco de deslizamento: os moradores saíram dias antes também pelo mato e deixaram veículos, roupas e até comida nas panelas para trás.
O alívio veio quando conseguiu entrar na casa, abriu uma janela e encontrou um isqueiro para acender o fogão à gás. Em segurança na casa, tirou as roupas molhadas, vestiu roupas limpas e acendeu o fogão a lenha para se aquecer e driblar o frio que sentiu ao longo da madrugada. Enquanto isso, a cabeça estava longe:
— Desde que eu caí, só pensava no meu pessoal no meio do mato. Eles não conheciam o caminho, tinha lugares que o peral era de 500 metros de altura. Só pensava que eles precisavam sair de lá, precisava dar certo — conta, antes de saber que o parto de Liliane tinha acontecido e Théo estava prestes a chegar aos braços da mãe.
A essa altura, a notícia do desaparecimento já se espalhara e muitos temiam pela morte do sargento em meio ao risco de deslizamentos de terra e a altura das ribanceiras na estrada que levava São José do Herval a São Sebastião.
Por volta das 9h de domingo (5), Ornel se sentou ao sol para descansar depois de andar pela área para entender como encontraria o caminho de volta para casa. Foi aí que ouviu um apito conhecido: era o barulho usado pelos agentes da Brigada Militar. Em resposta, começou a dar tiros para que os colegas identificassem o seu paradeiro.
— Quando eu vi choveu de colega meu, começaram a gritar e correr para o meu lado. Foi uma emoção muito grande, alegria, não sabia se chorava, se dava risada, eu abraçava eles, eles me abraçavam, choravam… foi uma alegria muito grande — relatou Ornel.
Com o grupo, o sargento aposentado conseguiu sair do local e voltou para Soledade, onde vive com a esposa Loraci e uma filha, depois de 36h de desaparecimento. Em casa, a família o esperava com aflição.
— Eu comecei a berrar quando descobri que eles tinham encontrado meu marido. Os vizinhos vieram achando que eu estava gritando porque ele tinha morrido, mas, não. Comecei a dizer: ele tá vivo, ele tá vivo. Chorei mais do que antes, quando era de ansiedade e nervosismo. O tempo todo eu sentia um calor em mim e tinha muita fé que ele fosse voltar para casa — relatou Loraci.
— Quando eu estava no meio do barro, no frio e no escuro, eu só pensava comigo para me manter calmo e não me apavorar. Medo a gente tem, mas eu fiquei o tempo todo falando comigo: “vamos Ornel, você não pode parar”. O que me acalmou foi a minha fé, pedia para Deus e para Nossa Senhora de Fátima me ajudar. Pedia: “me proteja e me oriente para chegar em casa” — completou o sargento aposentado, que é católico e vice-presidente da igreja do bairro onde mora em Soledade.
Quando chegou em casa, o sargento recebeu a notícia: toda a comitiva voltara para casa e Liliane já estava com Théo nos braços, em Passo Fundo. O menino, inclusive, recebeu um segundo nome: “Vitório”, por causa das circunstâncias que possibilitaram o seu nascimento. Tanto a mãe quanto a criança, que nasceu com 3,5kg, estão saudáveis após um parto de cesárea.
A história, enfim, teve final feliz em meio à maior tragédia climática enfrentada pelo RS. Apesar do sofrimento coletivo, ao voltar das suas horas desafiadoras na mata, Ornel conta que recebeu de presente uma “data de renascimento” — e já planeja uma festa para celebrar os 30 anos de casado, em agosto, “se Deus quiser”, como diz.