Cãoterapia auxilia no tratamento de transtornos mentais nos residenciais terapêuticos do hospital psiquiátrico
O Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, já foi palco de várias lendas urbanas e carrega, em sua história, uma coletânea de mistérios. No entanto, o que poucas pessoas sabem é que uma das “médicas” do local é uma cadelinha preta e branca de 10 anos. Batizada de Iracema Pipoca por sua dona, ela pratica o que é conhecido popularmente como “cãoterapia”, auxiliando no tratamento das pessoas com transtornos mentais que moram no Residencial Terapêutico Primavera, moradia de acolhimento para ex-pacientes do HPSP, localizado na Vila São Pedro, na capital gaúcha.
No início de janeiro, a cadela fugiu do Residencial e um card com informações sobre ela recebeu o selo de “encaminhado com frequência” no aplicativo de mensagens WhatsApp. Felizmente, Pipoca foi encontrada rapidamente, mas essa situação abriu o debate sobre a importância desses vínculos afetivos com as pessoas que lidam com transtornos mentais.
Com um sorriso de orelha a orelha, Júlia Aparecida Lopes, a tutora de Pipoca e moradora do Residencial, conta que fica muito feliz com a presença da cadelinha em sua vida e que se sentiu aliviada depois que encontraram o animalzinho. Para a psicóloga do Hospital Psiquiátrico São Pedro Gisele Belmonte, a relação das duas estimula a autonomia de Júlia e ainda ajuda os outros moradores a conviverem entre si.
— A (presença da) Pipoca é um jeito da Júlia circular, conhecer as pessoas e fazer vínculos. Ela é um apoio, um suporte para saúde mental dela, destaca a psicóloga.
A psiquiatra alagoana Nise da Silveira foi a primeira pessoa que se tem registro a implementar a técnica de Terapia Assistida por Animais (TAA) no Brasil. Em 1950, a médica decidiu instituir a prática no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Estado do Rio de Janeiro, utilizando cães no tratamento de pacientes diagnosticados com esquizofrenia. A partir daí, o uso da terapia se expandiu no Brasil e, hoje, tem uma de suas frentes no Hospital Psiquiátrico São Pedro de Porto Alegre.
A diretora técnica do HPSP, Liliane Dias de Lima, acredita no potencial da prática e explica que os animais devem receber um treinamento especializado para contribuir com o método.
— O cão deve passar por um treinamento, por um adestramento, para ele aprender a conviver com as pessoas sem que ofereça nenhum tipo de risco. Ele também deve ser devidamente vacinado, desvermifugado, e tem que ser higienizado para poder participar desse tipo de atividade — afirma.
A Pipoca, porém, é uma exceção. Segundo a diretora técnica, a cadelinha já nasceu com a predisposição de cuidar e atua como laço afetivo dos moradores do Residencial, que têm maior predisposição de apresentarem sintomas de ansiedade e depressão, associadas as suas patologias originais.
Tendo em vista o sucesso do método utilizado no Hospital Psiquiátrico São Pedro, a diretora técnica Liliane afirma que há um projeto em andamento para treinar outros cães e criar um polo de capacitação de “cãoterapia” no Rio Grande do Sul.
Existem diversos benefícios cientificamente comprovados da Terapia Assistida por Cães, entre eles a neutralização de sentimentos desconfortáveis e a estimulação do senso de responsabilidade. De acordo com Liliane, uma pessoa muito agitada pode ter sua atenção alterada com a presença de um cão, se a atividade for assistida por profissionais e o animal for capacitado.
A diretora ainda explica que os animais também são muito utilizados para o manejo de situações emocionalmente difíceis.
— Ele pode distrair um sentimento de raiva, de agressividade, e isso ajuda, às vezes, no manejo com situações mais delicadas. Então, é, na verdade, uma utilização do animal muito mais do que uma domesticação — afirma Liliane.
Para a diretora, a terapia assistida por animais é uma forma de humanizar o tratamento psiquiátrico, muitas vezes estigmatizado pela sociedade. No caso da Pipoca, os benefícios da técnica são visíveis para quem convive com a sua dona e com os outros 10 moradores do Residencial Primavera, na Vila São Pedro. No caso da Júlia, é ela quem é responsável pela cadela, o que ajuda a trabalhar a autonomia e o senso de responsabilidade e civilidade da moradora.
— Ela tem uma referência. Ela é a Júlia, dona da Pipoca. Isso faz parte da identidade dela _ exemplifica a diretora.
Apesar de ser fruto de diversos estudos científicos e de ter sua eficácia comprovada por profissionais, o método da terapia assistida por animais e, mais especificamente, da “cãoterapia”, ainda enfrenta desafios para a sua implementação no sistema de saúde. Para Liliane, os principais obstáculos que esse tratamento enfrenta são o preconceito e a desinformação.
— Acho que depois de ultrapassarmos esses desafios, havendo a possibilidade do desenvolvimento do trabalho, não vão haver obstáculos. Vai haver, pelo contrário, uma adesão — relata a diretora.
Camisa de força, choque elétrico e lobotomia. Esses eram alguns dos métodos utilizados para tratar pacientes com transtornos mentais nos extintos manicômios. Considerados cruéis e oriundos da tortura por médicos especialistas, a maioria dessas práticas é proibida por lei no Brasil atualmente. Porém, a denominada luta antimanicomial tem diversas outras nuances; entre elas, está a desinstitucionalização dos pacientes internados. No Rio Grande do Sul, desde 1992 — quando foi promulgada a Reforma Psiquiátrica no Estado —, a busca por mudanças no tratamento de transtornos mentais é constante.
Dessa forma, a maioria dos antigos residentes do Hospital Psiquiátrico São Pedro foi encaminhada para residenciais terapêuticos, onde vivem uma vida comum, mas com acompanhamento de profissionais. De acordo com a diretora, foi realizada uma ampla pesquisa social para encontrar familiares ou possíveis cuidadores para essas pessoas, no entanto, não houve resultados promissores.
— Eles precisam de um cuidado 24 horas, e de observação sobre a higienização e a alimentação, porque são pessoas com dificuldades. Então, o lugar certo é uma moradia protegida, que a gente chama de residencial terapêutico — explica Liliane.