Yasmin Vaz dos Santos Rodrigues e Bruna Nathiele Porto da Rosa são submetidas a julgamento pelo assassinato do menino no Litoral Norte
Imagens de câmeras, troca de mensagens e pesquisas na internet estão entre algumas das evidências obtidas pela polícia, que o Ministério Público considera provas contra a mãe e a madrasta de Miguel dos Santos Rodrigues, sete anos, que desapareceu em julho de 2021. Esses materiais devem ser debatidos durante o julgamento da mãe Yasmin Vaz dos Santos Rodrigues, 28, e da então companheira dela, Bruna Nathiele Porto da Rosa, 26, no Litoral Norte. As duas estão presas pelo assassinato do menino. O júri está previsto para se iniciar nesta quinta-feira (4), em Tramandaí.
Além desses elementos, obtidos durante a investigação da Polícia Civil, o MP deve apresentar, durante a fase dos debates, elementos de prova que ainda não foram publicizados, embora estejam no processo. Um dos pontos que a acusação deve abordar é a motivação do crime. No entendimento da acusação, Bruna e Yasmin consideravam Miguel um entrave para o relacionamento delas. O promotor de Justiça André Tarouco, responsável pela denúncia, espera que as duas sejam condenadas pelos crimes dos quais são acusadas. Ele atuará na denúncia junto da promotora de Justiça Karine Teixeira, designada pelo Núcleo de Apoio ao Júri do MP.
Responsável pela defesa de Yasmin, a advogada Thais Constantin diz que não pretende pedir a absolvição, mas que busca uma condenação com base em provas e não somente na confissão da ré. Já o criminalista Ueslei Boeira, que defende Bruna, afirma que buscará demonstrar no plenário que a madrasta não foi a responsável direta pela morte do menino. (Confira abaixo mais detalhes sobre as defesas).
Foram obtidas imagens que mostram o menino Miguel dentro de um armário. Os vídeos foram gravados na primeira pousada onde os três moraram na praia de Santa Terezinha, em Imbé. Em um dos momentos, a madrasta ameaça espancar o menino. Em um dos vídeos, o garoto diz que tenta chamar a atenção da mãe para que ele possa sair do guarda-roupas e para que ela volte a dar “lanchinhos” para ele. Para a acusação, isso demonstra que ele era torturado, com castigos, que incluíam ficar preso e sem comer.
— Não toleravam qualquer ato de uma criança de sete anos, que talvez não comesse, não queria tomar banho na hora que elas queriam. O castigo era ficar trancado. Não deixavam a criança sair, não pegava sol, nem nada. Isso é ato de tortura. Esses são requintes de crueldade que eram praticados — afirma o promotor Tarouco.
A polícia obteve na investigação imagens que flagram o trajeto realizado por Yasmin e Bruna na madrugada do dia 29 de julho entre a pousada onde elas viviam, na Rua Sapucaia, na área central de Imbé, e as margens do Rio Tramandaí. Uma das câmeras flagrou as duas passando com a mala e depois o mesmo equipamento registrou o retorno. As duas retornaram abraçadas e já sem a mala, onde estaria o corpo do menino.
Conversas entre a mãe e a madrasta, e também de Bruna com outras pessoas, são apontadas como provas de que o menino era visto como empecilho para a relação das duas. Em uma das trocas de mensagens, segundo o promotor, a madrasta se refere ao garoto como “lixo”. Para a acusação, o fato de ele ser visto como um entrave para a relação foi o motivo que levou ao crime.
A mala na qual o garoto teria sido transportado foi encontrado em uma lixeira em frente a uma residência. O local foi indicado pelas próprias presas. A mala foi encaminhada para perícia, que conseguiu apontar existência de material genético do menino.
Entre os dias 26 e 29 de julho, pesquisas foram realizadas na internet com o celular de Yasmin. Os dados foram extraídos do aparelho pela polícia. Para a acusação, são provas que ajudam a entender a dinâmica do crime. Em uma das buscas, tenta-se descobrir se a água do mar é capaz de apagar impressões digitais. Ainda no dia 26, a pesquisa se dá sobre o que fazer quando uma criança tem alucinações. Neste momento, a acusação entende que o menino já havia sido espancado e sofria com as sequelas das agressões.
— Em nenhum momento se preocuparam em buscar socorro. Se não quisessem matar, elas teriam tomado outras atitudes. Mas o que elas fizeram? Intensificaram ainda mais os atos. Essa cadeia sucessiva de atos que levaram a criança a óbito, que mostra que premeditaram a morte — detalha Tarouco.
Foram encontrados cadernos do menino, nos quais, segundo a acusação, ele era obrigado a escrever frases ofensivas. Miguel seria obrigado a copiar frases com insultos, onde escrevia “eu sou um idiota”, “não mereço a mamãe que eu tenho”, “eu sou ruim”, “eu não presto” e “a minha mamãe é maravilhosa e eu sou péssimo”.
A polícia aprendeu cadeados que teriam sido usados para manter o menino preso. Uma corrente foi encontrada no lixo do banheiro da última pousada onde elas moraram. Nela, havia material genético compatível com o de Miguel. A acusação afirma que a mãe e a madrasta tinham o hábito de acorrentar a criança, como forma de castigo e tortura.
Os peritos recolheram um fio de cabelo dentro de uma peça atrás do box do banheiro (um poço de luz), onde, segundo a polícia, o garoto era mantido trancado. A peça tinha cerca de um metro quadrado, era escura e fria. O cabelo pertencia a Miguel.
Outra evidência descoberta ao longo da apuração foi uma camiseta infantil, com sangue humano. A análise do Instituto-Geral de Perícias (IGP) concluiu que o DNA é compatível com o de um filho de Yasmin — Miguel era o único dela. Para a apuração, isso indica que o menino era vítima de agressões.
A defesa de Yasmin não pretende pedir a absolvição da mãe pelo crime, pelo contrário. Segundo a advogada Thais Constantin, o intuito é permitir que os jurados analisem as provas periciais, que constam no processo, e que julguem a mãe com base nisso.
— Nossa bancada trabalhará para que o Conselho de Sentença decida por sua livre convicção, baseada no olhar crítico sobre cada prova que integra os autos. Da mesma forma, demonstrar que o conteúdo probatório se calçou na confissão de Yasmin, deixando de analisar a compatibilidade de suas declarações com as provas periciais formalizadas pelo Instituto-Geral de Perícias. Confiamos que, ao final deste julgamento, os jurados afastados da pressão social condenem Yasmin, na medida dos atos por ela efetivamente praticados — sustenta a defesa.
Responsável pela defesa de Bruna, o advogado Ueslei Boeira afirma que pretende demonstrar no plenário que a madrasta não foi a responsável direta pela morte do menino.
— É um processo extenso e que estamos buscando em cada detalhe trabalhar em uma defesa técnica e esclarecedora, dando voz a Bruna, para que o Conselho de Sentença possa julgar dentro da realidade dos fatos e conforme as provas que há processo, de acordo com suas consciências, e que possam decidir, caso entendam pela culpa ou inocência da Bruna. Portanto, buscaremos demonstrar que a Bruna não concorreu diretamente ao resultado. Esperamos que seja um julgamento justo e respeitoso para todas as partes — afirma o criminalista.
No dia 29, Yasmin procura a Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento de Tramandaí para registrar o desaparecimento do filho, que, segundo ela, teria acontecido dois dias antes. Os policiais suspeitam do relato e seguem com a mãe e a madrasta, Bruna, até a pousada onde elas viviam. Lá, elas acabam confessando que a criança foi morta e teve o corpo arremessado no rio. Yasmin afirma ter agido sozinha e é presa.
Três dias depois de o crime ser descoberto, a madrasta é presa de forma temporária. A prisão ocorre após a polícia analisar o aparelho celular de Bruna e encontrar conteúdos, como mensagens e vídeos, que levaram à conclusão de que ela teria, no mínimo, participação nos maus-tratos ao garoto. Num dos vídeos, a mulher aparece ameaçando espancar o menino e mantendo o garoto trancado dentro de um armário. Ao longo do mês, ela é transferida para o Instituto-Psiquiátrico Forense (IPF).
O delegado Antônio Carlos Ractz Júnior encaminha à Justiça o inquérito, indiciando a mãe a madrasta do garoto pelos crimes de tortura, homicídio qualificado, por meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima, e ocultação de cadáver. Dez dias depois, o MP denuncia as duas por homicídio triplamente qualificado (acrescenta o motivo torpe), tortura e ocultação de cadáver.
Após 48 dias, os bombeiros do Litoral Norte encerraram no dia 14 daquele mês as buscas pelo corpo do menino Miguel. Desde que o caso foi descoberto, as equipes vinham realizando varredura em diversas cidades, em busca da criança. Ao longo da operação, os bombeiros usaram embarcações, aeronaves e um drone. No mesmo dia, o IPF divulga laudo que constata que Bruna não possui alteração em sua saúde mental.
No dia 8, ao longo de cinco horas, é realizada a reprodução simulada dos fatos, popularmente conhecida como reconstituição. Somente a madrasta participa da perícia e demonstra como teria acontecido o crime. Ela percorre também o trajeto entre a pousada e a beira do rio. Assim que veem Bruna irromper pela Avenida Paraguassú, moradores esbravejam repetidas vezes: “Assassina!”. Nas proximidades do Rio Tramandaí, a madrasta indica o local onde Yasmin teria aberto a mala e arremessado o corpo do filho.
No dia 19, em audiência na Justiça, Bruna aponta Yasmin como a responsável pela morte de Miguel. Relata ainda que a companheira agredia o filho constantemente. Bruna diz que Miguel teria sido agredido pela mãe, deixando inclusive uma marca na parede, onde teria batido com a cabeça da criança.
A madrasta relata ainda que o menino foi dopado e teve o corpo colocado dentro da mala, após ficar horas trancado num fosso de luz e num armário. Yasmin opta por permanecer em silêncio.
O juiz Gilberto Pinto Fontoura, de Tramandaí, determina que as duas rés devem ser julgadas pelo Tribunal do Júri. Além do homicídio triplamente qualificado, a mãe e a madrasta respondem por tortura e ocultação de cadáver. Para o magistrado, há indícios de que o menino sofria “intenso sofrimento físico e mental”, por exemplo, privado de alimentação adequada e mantido preso por logos períodos em um guarda-roupa.
Em sessão virtual realizada pela 3ª Câmara Criminal, o Tribunal de Justiça do RS nega, por unanimidade, o recurso da defesa e mantém a decisão que leva a júri Yasmin e Bruna. Na decisão, o colegiado também nega o pedido de soltura das rés. As defesas buscavam que elas não fossem submetidas ao júri e que as oitivas fossem realizadas novamente. Contra essa decisão, as defesas apresentaram recursos, que não foram admitidos pelo TJ-RS. Em razão disso, as defesas recorreram ao STJ.
O processo retorna à Justiça gaúcha após todos os recursos das defesas das rés serem negados. A data do julgamento é definida pela juiz Gilberto Pinto Fontoura para o dia 4 de abril.